O HOMEM DA COBRA

     

— Ah! Hoje, eu estou muito legal! Você não está vendo minha cara de felicidade? Depois do que eu passei ontem, amanheci, hoje, uma beleza! Ontem, tive que madrugar para ir ao dentista. Só de pensar nisso, meu humor foi-se embora. Já imaginou sentar, na cadeira do dentista, às sete horas da manhã, tomar anestesia, a porcaria não pegar, e o maldito arrancar seu nervo assim mesmo? Cara! Eu quis esbofetear o safado! Tenho certeza de que o cretino fez de propósito. Só para me fazer sofrer. Para vingar-se de mim porque eu reclamo do serviço dele. Reclamo mesmo! Ele não presta. Devia estar tratando dos dentes dos cavalos e dos bois da fazenda dele. Fazenda que ele comprou, desviando verba da Câmara Municipal quando foi presidente. Ele não presta. Eu sei que ele não presta, mas tenho que tratar os dentes com ele por causa do convênio. Eu sei que há outros dentistas no convênio, mas é tudo igual. Nenhum presta. Com ele, pelo menos, tem status. É mais chique dizer: “Trato meus dentes com o Dr. Fulano”. Do que dizer: “Trato meus dentes com o Dr. Cicrano”.  Mas que ele presta, não presta não. Depois, tive que ir tirar xérox de meus documentos pessoais e do holerite para entregar na repartição do tal convênio, e perdi a droga de meu CPF. Se é que eu perdi. Os bandidos estão por aí, espreitando, nos pontos de xérox, esperando só um pequeno descuido para roubá-lo. Com ele, fazem os outros documentos, abrem conta em qualquer banco, pegam talões de cheque e saem, dando golpes em todo o mundo. Sem contar o tanto de crediário que os malditos fazem e deixam para pagarmos. Quando descobrimos, já estamos com o nome no SPC, CERASA, Banco Central, na polícia. Ficamos até fichados por estelionato. É terrível. Eu odeio esses malditos ladrões. Gostaria que todos eles morressem com uma dor de barriga daquelas bem fortes que parecem dor de parto. Quer pior que uma boa dor de barriga? Eu tinha certeza de que meu CPF havia sido roubado, mas, mesmo assim, andei pelas ruas, para baixo e para cima, procurando a porcaria de meu documento e não o encontrei. Fazer o quê? Fui para a delegacia fazer B.O. Você não sabe o que é um B.O.? Boletim de Ocorrência, paroba. Ah! Também não sabe o que é paroba? Eu também não, parobinha! Essa palavra nem existe no dicionário! É só um dito popular que quer dizer... Venha cá. Onde você pensa que vai? Ficou com raiva? Ficou com raiva? Ai, ai! Estou morrendo de pena! Idiota! Não sabe o que é B.O. e não quer que eu diga que é paroba? Não quer, não quer! Mas que é, é. Não adianta fugir, venha aqui que eu não terminei de contar. Então, cheguei à delegacia, lá naquele fim de mundo e fui logo falando para um abestalhado que estava na portaria: — Olha aqui, moço, vocês ficam aí sentadinhos, atrás dessa mesinha velha caindo aos pedaços, enquanto os malditos ladrões estão soltos por aí, roubando tudo que podem. Acabaram de roubar meu CPF. Agora vai ser a maior complicação. Vai ter neguinho ligando para cobrar conta que eu não fiz. Vai ser um tal de meu nome ir para o SPC, SERASA, Banco Central, China, Cochichina e o escambau. Tudo por quê? Porque cidadão paga imposto para sustentar a polícia para que ela nos dê proteção, mas, vocês só ficam aí, como diriam os americanos, com seus belos traseiros gordos, pregados nos bancos, em vez de correr atrás dos malditos ladrões que estão soltos, roubando quem paga impostos, quem paga seus salários. Sabe o que o calhorda fez? Queria prender-me por desacato à autoridade. — Que autoridade? — Perguntei. Estou vendo aqui um fulaninho que nem farda veste. E quem está sofrendo desacato sou eu que pago meus impostos e ainda me roubam. E se você não resolver logo meu problema, faço perder essa merda de empreguinho que você tem. Você sabe com quem está falando? Pois é! Resolva logo o meu problema, senão coloco você no olho da rua. O cara abaixou a crista, na hora, e foi logo fazendo meu B.O. Coitado! Um idiota! Se eu tivesse tanto poder assim, não precisava ir ao dentista de convênio... Mas o mundo é assim. Essa nossa sociedade hipócrita não valoriza o ser humano pela sua essência, mas, sim, pela sua aparência. Se uma mulher bota um salto e um colar com um pingente quadrado, bem grande, ou se um homem coloca um terno e gravata, uma pasta executiva, pode até estar vazia ou cheia de jornal velho, não importa, isso basta para que os chamem de doutores. É mesmo muito medíocre essa nossa sociedade. Escandalosamente podre. Sei que me fizeram esperar uns dez minutos para falar com o delegado. Homem azeeeeedo! De cara amarrada. Não me deu nem moral. Sabe o que o cretino disse? Que tinha coisa mais importante para fazer que ficar procurando CPF de gente desatenta que sai por aí, perdendo documento. Eu queria dizer umas verdades para ele, mas o estúpido me fez sair da sala, e ficou por isso mesmo. Saí de lá, fuzilando de raiva. Na primeira esquina, bati meu carro. Veio a polícia me dizer que o erro era meu, porque entrei com o sinal amarelo. Eu e a torcida do Flamengo! Respondi. Todo mundo entra com o sinal amarelo, ora! Por que só eu não posso entrar? E quem mandou esse imbecil entrar antes de abrir o sinal? Não teve argumento que convencesse o merdinha de guarda de trânsito que eu não havia errado. Vou ter que pagar o conserto dos dois carros e, ainda, perder pontos na carteira. O cara-de-pau me chamou de lado e cobrou propina para eu não perder os pontos. Tive que aceitar, não é? Molhei a mão dele com cem reais. Cheguei à seguinte conclusão: esses guardinhas de trânsito não sabem nada. Fazem uns cursinhos fubás por aí e vêm esfregando as fardas na cara da gente. Maior abuso de poder! Bem. Fomos para a oficina. O dono do outro carro, um safado! Quis tirar proveito da situação. Exigiu a oficina mais cara da cidade. O dono da oficina, outro safado, ladrão, vagabundo. Arrancou-me o couro por causa de um amassadinho de nada. Lá ficaram quatro cheques pré-datados. Meu décimo terceiro salário dançou. Saí da oficina e fui para o banco. Eu, com uma pressa louca, numa fila imensa, uma hora trocando de perna, apareceu um sujeito com um pacote de cheques para depositar, passou na frente de todo mundo e pediu para a coleguinha depositá-los para ele. Pode?! Aí eu apelei. – Ô, moça, qual é a sua? Se você quiser fazer o serviço dele, até pode, mas terá que ficar atrás de mim. Na minha frente não, violão! Pensa que sou idiota? – A tal moça não deu nem atenção. Fez de conta que não era com ela e ainda ficou rebolando aquele bundão em minha cara. Fui lá, agarrei a piranha pelo braço, dei-lhe uma sacudidela e lasquei-lhe um “você é surda?”, na cara. Aí, sim, o guarda do banco veio e queria botar-me para fora. Bonito, não é? – Falei. – A safada bota cliente na frente de todo mundo que está na fila, e quem tem que sair do banco sou eu? Quero ver o macho que vai me tirar daqui. – Na mesma hora, todos tomaram partido. Uns contra, outros a favor. Fechamos o guarda em um círculo e blá, blá, blá, blá. Quando dei por fé, a fulaninha tinha ido lá, depositado os cheques e estava indo embora. Eu fiquei com tanta raiva que quase lhe dei um chute na bunda. Saí de lá, espumando. É. Esse mundo está cheio de gente que não presta. Que se aproveita da situação para se dar bem. Se a gente não fica de olho aberto, passam-nos para trás a toda hora. Você está achando que terminou? Que acabou? Que nada! Saí do banco, a pé, porque o carro havia ficado na oficina para eu ir buscar sei lá quando. Primeiro, eu tenho que pagar o carro do outro, não é? Pensei: “Vou andar um pouco para arejar a cabeça, porque hoje está bravo!” Estava indo. Vi uma vitrine, vi outra. Especulei preço aqui. Especulei preço ali. Tudo para me acalmar. Continuei andando. Então, vi um mendigo com uma ferida enorme na perna, malcheirosa, juntando moscas. Morri de pena! Pensei: “E eu ainda reclamo da vida!” Peguei cinqüenta reais e dei a ele. Eu sabia que era muito dinheiro para dar de esmola. Ainda mais depois do prejuízo que tive com o acidente, mas estava acontecendo tanta coisa ruim comigo que pensei: “Deus deve estar me castigando. Boa coisa eu não fiz. Vou fazer uma boa ação para me redimir com Deus.” Dei o dinheiro para o coitado e fui embora. Tive tanta pena daquele pobre homem sujo, fedorento, cheio de ferida na perna, desdentado, descabelado, desgraçado, que resolvi voltar para ajudá-lo melhor. Pretendia levá-lo ao médico e, depois, encaminhá-lo para um abrigo. Voltei. O mendigo estava indo embora. Fui atrás, andando rápido para alcançá-lo. Ele nem parecia que tinha aquela ferida horrorosa na perna de tão rápido que andava. Eu não consegui alcançá-lo, mas vi quando entrou em um corredor e desceu umas escadas. Pensei: “Foi fazer xixi.” Fiquei esperando. O cara estava demorando, então resolvi descer. Pensei que ele morasse em algum cubículo daquele corredor. Sabe o que eu vi? O cara, tirando a roupa fedorenta, a ferida da perna, que era falsa. Colocou a dentadura, limpou-se com água de cheiro, vestiu roupa limpa, terno, gravata, tirou a peruca, penteou-se e saiu de lá todo elegante com uma pasta executiva na mão e contando o dinheiro que ganhou no dia. Entrou em um carro quase novo e foi embora dirigindo. Eu tive reação? Nenhuma! Depois que passou meu estado bestial, resolvi que, no dia seguinte, levaria a polícia lá e o colocaria na cadeia. Olha, naquele momento, eu tive a certeza de que esse mundo estava perdido! Que ninguém prestava mesmo! Que era todo mundo fazendo tudo para se dar bem, não importando que tivesse que passar por cima dos direitos e dos sentimentos dos outros. Que era a lei do cão. O que é meu, é meu. Do que é dos outros, eu só quero a metade. Deus me livre com esse mundo! Quando cheguei em casa, joguei-me no sofá  na maior depressão de minha vida. Liguei a televisão. Estava passando o telejornal. Nossa! Se torcesse, sairia sangue. Foi uma tal de guerra de traficante, de assassino matar mendigo a paulada. De assaltante matar refém e ser morto pela polícia, de rebelião no presídio, de guerra no mundo inteiro. Dei um berro: — Páaaaaaaaara o mundo que eu quero descer. – Como diria Sílvio Brito. Tomei dois Lexotans e desmaiei. Acordei hoje, aos cacos. Rezei um Pai Nosso. Três Ave-marias, o Credo e a Salve Rainha para abençoar bem o meu dia, fechar bem o meu corpo e fui fazer minha caminhada matinal. Passando em frente de uma escola de deficiente mental, que se localiza perto de minha casa, notei que as crianças já haviam entrado, mas havia um carro parado na porta com uma criança dentro e um homem negro, franzino, bem trajado, elegante na calçada, perto do carro, curvado, olhando para o chão. Por curiosidade, dirigi meu olhar para o ponto onde ele olhava. Levei um susto danado! Uma cobra enorme ora se arrastava, ora se enrodilhava perto dele. E o doido lá. Com uma vareta na mão, cutucava a serpente e observava-a, como se estivesse estudando a bicha. Cá de longe, que eu não sou besta de chegar perto, perguntei:
— Isso é cobra de verdade?
— É. – Respondeu o homem, sem olhar-me.
— Então, mata ela.
— Eu não mato bicho.
— Nem cobra?
— Nem cobra!
— Mas ela pode morder uma criança da escola e matá-la.
— Estou observando se é venenosa.
— Como você vai saber?
— Pelos olhos.
— Qual a diferença?
— A cobra venenosa tem os olhos brilhantes.
— E se for venenosa? Você vai matá-la para não morder as crianças, não é?
— Eu não mato bicho.
— Mas é uma cobra!
— É um bicho feito por Deus. Só Deus tem o direito de matá-la.
— E o que pretende fazer, então?
— Vou pegá-la e jogar no mato.
Fiquei observando aquele homem, lutando para pegar a cobra sem feri-la ou ser ferido. Quanto mais a serpente se sentia acossada, mais ameaçadora ficava. De repente, o homem deu um bote e agarrou a bicha pelo pescoço, se é que aquilo tem pescoço. Segurou-a com força. Ela se enroscou em seu braço e ele a levou para a mata do entorno do bairro onde, segundo ele, a pobrezinha estaria segura e encontraria comida à vontade. Saí andando, sentindo-me tão leve! O mundo parecia ter mais cor. Os raios do Sol brilhavam mais. Estava tudo diferente! É por isso que hoje eu estou com essa cara de felicidade.








       

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