A AGONIA DA BARATA



A AGONIA DA BARATA
VALNICE PEREIRA

Ella entrou no banheiro, desceu a calça, sentou-se no vaso, apoiou os cotovelos nos joelhos, o queixo nas mãos e ficou imóvel, sem fazer nada. Não tinha necessidade fisiológica de defecar, nem urinar. A necessidade estava na alma. Precisava ficar ali, sozinha. O olhar, que emitia uma grande tristeza, se fixara em uma barata que esperneava porque caíra de costa. Não queria fazer nada. Nem mesmo chorar, ou talvez, só chorar, apesar das lágrimas não aflorarem.
A barata esperneava, e seu pensamento não vinha. Havia um vácuo em seu pensamento. A barata esperneava e parava para descansar. Voltava a espernear numa tentativa desesperada de se virar e fugir dali. Os olhos de Ella fixos na barata. O queixo nas mãos. O cotovelo nos joelhos. A cabeça vazia. Os olhos sem lágrimas. A barata querendo fugir dali. Os olhos apavorados fixos na mulher de calças arreadas. E se aquela gigantona resolvesse lhe pisar e esmagar sem piedade? Precisava fugir dali com urgência. Esperneava. Esperneava sem parar. Mas as pernas não alcançavam o chão. O chão encerado escorregava. A barata não conseguia se desvirar.
Ella era seu nome, porque, filha de pais lavradores que semeavam véus de sementes e em cada ano nascia um novo trabalhador, não tiveram tempo sequer para escolher-lhe um nome. Referiam-se a ela por Ela.
_ Dá a mamadeira pra ela.
_ Ela está chorando.
_ Faça ela dormir.
Ela daqui, Ela dali, no dia de registrar, cinco anos após seu nascimento, o pai olhou para a mãe, a mãe olhou para o pai e responderam juntos à pergunta do escrivão:
_ O nome dela é Ela.
O rapaz quis dar um toque mais sofisticado e escreveu o nome com dois eles.
Ella era a terceira filha e crescera vendo a mãe parir e trabalhar na lavoura para ajudar o marido a sustentar as bocas paridas.
Amava a mãe. Tinha por ela profunda admiração e respeito, pois, apesar de ser analfabeta, possuía a sabedoria de seus ancestrais que, através da observação iam desvendando os mistérios do conhecimento humano.
Os filhos crescendo, vieram para a cidade, a fim de colocá-los na escola. E na escola aprenderam desde cedo que a vida oferecia bem mais que um casebre de pau-a-pique em uma roça qualquer. Mas também, deixava claro que a batalha era árdua e era preciso lutar muito para merecer uma vida com dignidade e ter um lar com comida na mesa.
Aquela mulher, não tinha um metro e meio de altura, mas se agigantava diante dos problemas e, apesar de ter perdido o marido tão logo chegaram à cidade, não esmoreceu. Terminou de criar os filhos com honradez e dignidade.
Esgueirava-se pela cidade, em cada canto, em cada ruela, nos lugares mais improváveis, oferecendo seus doces caseiros, para garantir o sustento dos filhos.
Um dia, os filhos criados, alguns formados, outros casados, outros apenas empregados, a mulher aposentou-se, deitou-se e enrigeceu-se num colchão d’água  por causa de um tombo que lhe partiu o fêmur já corroído pela osteoporose.

Olhar fixo no teto, admirando as aranhas tecerem suas teias, ou nas paredes, encabulando-se com a rapidez das lagartixas em aprisionar e devorar suas presas, tentava fugir do pensamento fúnebre da morte que se avizinhava. Assim passara os últimos cinco anos de sua longa vida. Os filhos em volta amando-a, socorrendo-a em tudo que era necessário, fazendo o possível para dar qualidade de vida à sua vida que se perdia, que se definhava, que se esvaía dia após dia.
Ella a visitava todas as tardes. Debruçava-se sobre seu leito, uma cama de hospital que os filhos tomaram emprestado, fitava seus olhos opacos pelas cataratas causadas pela diabete e perguntava:
_ Como é que você está mamãe?
_ Ah! Estou aí. Assim como Deus quer. _ Respondia a velha anciã com seu olhar sem amanhã. Era a resposta de todos os dias. Ella ficava em silêncio tentando adivinhar o que se passava em seu pensamento. Nunca lhe perguntou:
_ Mãe, de onde você veio? Quem é você? Como foi sua infância? Quem era sua família?
Nada disso importava. Importava apenas que era sua mãe e a amava. Não queria perdê-la. Não saberia o que fazer sem ela.
 E agora ela estava ali, catatônica, envolta em lençóis brancos com a etiqueta do hospital esperando o momento final.
_ Mãe, lute contra essa doença. Dizia Ella com os olhos lacrimejando.
_ Estou lutando.
A voz arrastada em um fio, foi a última coisa a ser dita. Depois veio o coma e a agonia da espera pela morte.
No banheiro, Ella não queria pensar. Se pensasse, pensaria na agonia da mãe e sofreria. Preferia ficar ali, olhando a agonia da barata que se esgueirara em sua porca vida pelos esgotos e cantos escuros de um submundo escroto e bacteriano. Talvez no final a esmagasse com seu pé impiedoso e se livrasse daquele bicho nojento e pegajoso.
A barata esperneava pressentindo o perigo. Precisava se desvirar e fugir dali. Mas qual? Por mais que tentasse não conseguia. De costa. De perna para o ar. Esperneando.
No hospital, a mãe. Deitada de costa. As pernas inertes, sem movimentos.
A lembrança. A lembrança de Ella agora ia e vinha. A mãe no hospital, agonizando, lutando contra a morte. A barata no chão, esperneando, lutando pela vida.
A mãe se esgueirando pelas ruelas da cidade para vender seus doces. A barata se esgueirando nos esgotos e cantos escuros para sobreviver entre bactérias e parasitas.
Lágrimas afloraram nos olhos de Ella. No começo eram lágrimas silenciosas escorrendo em suas faces. Depois um soluço. Outro soluço. Um gemido abafado. Um grito de dor. Prantos. Choro gritado. Uma dor sem fim.
A barata esperneando. A dor aumentando. Ella ouve alguém bater na porta e chamar.
_ Ella, o que está acontecendo? Abra a porta.
Fica em silêncio. Para de chorar gritado. Só as lágrimas escorrendo, escorrendo. Parecia nunca ter fim. A voz chamando...
_ Ella, abra a porta. Nós queremos te ajudar.
_ Ajudar! _ Pensa Ella em voz alta. _ Eu preciso ajudá-la.
Apanha um pedaço de papel higiênico, coloca-o sobre a barata. Esta crava nele suas pata e Ella a desvira. O bicho foge imediatamente para o esgoto.
A voz volta a chamar:
_ Ella, abra a porta. Estão te chamando ao telefone. Venha atender.
Ella abre a porta e atende ao telefone. Era do hospital informando que sua mãe  parara de agonizar.    

Um comentário:

  1. A agonia da barata, a agonia da mãe, a agonia da protagonista que põe fim à agonia da primeira libertando-a pouco antes de saber que sua mãe também finalmente libertou-se. Muito bom enredo.
    Abraço do Remisson Aniceto

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