COMO TUDO COMEÇOU


_ Santa Clara clareai!
Um relâmpago na noite em breu. A frente o gado ruminava, atrás as cobras rastejavam. O clarão dos faróis do ônibus que a trouxera se apagou. O escuro devorou-a Um escuro tão intenso que seu próprio corpo, alma e mente parecia se fundir com ele.
Outro relâmpago. Um passo à frente. Sonhou a vida inteira com o ofício de professar. E agora estava ali, no meio daquele breu para o seu primeiro dia. Santa Clara clareou. Outro passo...
Estudou o magistério em uma escola pública porque o pai sonhava em ter uma filha professora e ela sonhava o sonho do pai. Arrisca outro passo na escuridão.
Foi babá quando ainda precisava de babá. Comia as sobras das papas da criança que pajeava. Assim acumulou fosfato suficiente para entender, que dois mais dois, não era igual a uma vida farta. Escalou-a com unhas de tatu.
_ Santa Clara! _ Outro clarão. Outro passo. Um tropeção. Muitas vezes caiu no chão sentindo o peso pesado da pobreza arrastando-a para baixo. Cravou as unhas e disse resoluta:
_ Mais que isso eu não desço!
Foi subindo devagar, sem muita opção de onde pisar, onde se agarrar. Com a metade da vida vivida, prestou o vestibular. Uma festa interior, pois não tinha dinheiro para comemorar o diploma que o pai sonhou e ela quis realizar. Agora estava ali. Era seu primeiro dia.
Uma vaca berrou bem perto. Se desse mais um passo cairia sobre ela. No desvio atolou o pé na merda. Um merdão daqueles.
Uma merda de vida quando o pai morreu. A mãe, analfabeta e sem profissão, fazia sabão para vender. Comprar o que com tão pouco? Priorizava o aluguel do pequeno barraco de dois quartos, onde morava com seus onze filhos. Buscava o que comer na caridade alheia e nos tambores de lixo, dos botecos de verdura. Consciente,  não deixou os filhos sem estudar.
Foi o pai. Foi a infância na luta pela sobrevivência. Santa Clara clareou sua mente e das sementes ali plantadas só as boas germinaram. Árvore começando a dar frutos. Um dos frutos, ainda verdolengo, estava ali agora, com o pé atolado nas fezes do gado, resultado de um concurso para ser professora em uma escola rural. Tirou o pé da merda neste seu primeiro passo. Daí para frente galgou degraus cada vez mais altos.
Alta era dona Ciranda quando apareceu na quina da casa com a luz tênue da pequena chama da lamparina. Santa Clara clareou de vez e finalmente a franzina professora iniciante pode caminhar entre os ruminantes. Com passos largos, quase correndo, como correu a vida inteira, sem ter tempo para namorar, amar, casar e procriar chegou até dona Ciranda. Esta sim teve todo o tempo dos relógios preguiçosos que não passam as horas bem vividas das vidas rurais. Sem o tempo dos relógios agitados da vida mal vivida pela agitação urbana, dona Ciranda passou o tempo procriando. Dez ao todo, era a sua prole. Alta e magra, porém, uma gigante maternal, como fora para si a sua mãe, a sua avó para sua mãe e sua bisavó para sua avó... Nem sabia de onde viera. De repente se percebera ali, crescendo com a barriga cheia de lombriga de porco, dos porcos que comiam nos dias de festa na roça. Um mundinho fechadinho nas verdes matas de um tempo sem carvoeira, sem pastagens e sem ganâncias. Nunca viajara, nem mesmo na imaginação de menina moça, cheia de desejos inconfessáveis. Simplesmente estava ali, vendo luas e sois cruzarem o céu num incansável pique- esconde da natureza em ciranda. Quem sabe daí o seu nome?!
Em um desses dias de festa, haveria pagode na beira da tulha, para comemorar a farta colheita da roça do senhor José e dona Gertrudes. Boa oportunidade para os rapazes conhecerem as moças e vice-versa. Era assim que começavam os namoros. Foi assim que dona Ciranda começou a namorar o senhor Chico da Pé-de-bode. Animador dos pagodes da região. Tocava bem. Quando abria o fole, a moçada se levantava e a poeira cobria no arrasta-pé do terreiro de terra batida. E como todo artista, tinha uma boa prosa. Falava bonito e convencia bem.
Dona Ciranda não dançou com ninguém. Ficou o baile todo sentada perto do sanfoneiro, piscando-lhe e recebendo suas piscadelas. Lá pelas tantas, alegando cansaço, o sanfoneiro parou de tocar por meia hora. Convidou a moça para uma conversa. Prazo suficiente para dizer-lhe que estava apaixonado e queria desposa-la. Seis meses após já estavam casados. Nove meses após nasceu o primeiro filho. O primeiro de uma prole de dez, dando início à família Garcês de Meirelles. Nome imponente que ninguém sabia de onde viera e nem estavam preocupados em saber. Afinal, qual a diferença? O que importava era que estavam ali, naquele mundinho restrito, vendo o sol brincar de pique-esconde com a lua e semeando hoje para comer amanhã.
O senhor Chico da Pé-de-bode deixou de ser tocador para ser semeador e sustentar sua família que não parava de crescer. Lá pelo quinto filho, a pobreza os assolavam. Moravam em um rancho de capim e plantavam a lavourinha de subsistência, à meia com o patrão. O pouco que sobrava, vendiam para comprar um pouco do muito que falava. Filhos doentes, catarrentos, lombriguentos e anêmicos. Mamãe Ciranda dando remédios caseiros. Naquele ano a seca estava forte. Meses sem chover. A lavoura mirrada não vingaria um pé. Desesperado, o senhor Chico da Pé-de-bode enterrou, bem no meio da lavoura a imagem de Santa Clara que ganhara de presente de sua devota esposa por ocasião do noivado. Disse-lhe:
_ Minha Santa Clara, planto-te nesta terra seca e dou-te a difícil missão de fazer brotar deste chão as sementes para meus pães que irão matar a fome dos meus rebentos. Peço-te ainda, que se for possível, faça-me sobrar um pouco do milho para vender e assim eu poder calçar e vestir minha família. Dar-te-ei o dízimo Senhora, para a construção de tua sagrada capela.
Santa Clara clareou de vês e o céu  se encheu de nimbos sobre a roça dele. A produção mais que dobrou. Com o dinheiro que sobrou o senhor Chico comprou uma vaquinha para o leite das crianças. A rês, que estava prenhe, pariu fêmeas gêmeas. Sorte grande que se multiplicou quando as filhas da vaquinha também pariram fêmeas, e suas filhas também, e as filhas das filhas também. E a roça virou pasto. E o senhor Chico virou patrão. E a fazenda do Matão virou fazenda Santa Clara para onde a prefeitura havia designado a professorinha franzina, valente e guerreira, que nem diante de uma noite em breu, caminhando entre cobras, sapos e ruminantes, desistiu de dar um passo à frente. Ali a capela Santa Clara foi edificada, e a primeira imagem foi doada por ela.
...E foi assim que tudo começou!!!
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