A FAIXA DO PRESIDENTE


Era um nada. Nascera um nada, predestinado a ser um nada. Um gabiru a crescer com a barriga cheia de lombriga e colocar com sua lombriga, sementinhas na barriga de uma fêmea que pariria dezenas de gabiruzinhos de olhar sem amanhã.
Esgueirava-se pelo sertão nordestino à cata de palmas para comer com sal e água lamacenta dos açudes que minguavam sob o sol escaldante.
No momento da sua concepção um erro de cromossomos colocou-lhe um neurônio a mais na cabeça chata de nordestino acostumado a carregar latas d’água. Ou talvez o tenha herdado da mãe guerreira que tivera peito e inteligência para encontrar solução para vir com sua manada de gabiruzinhos atrás de um marido que a abandonara no sertão e viera tentar a sorte no sudeste. Encontrou-o casado com outra a fazer uma nova prole. A mãe guerreira não retornou ao agreste. Preferiu ficar em uma favela qualquer e dar aos filhos o que o sertão nordestino não tinha para oferecer: estudos.
Cresceu o pequeno gabiru de um neurônio a mais, colocando-o para funcionar e, desde cedo, percebeu-se ser um líder nato. No sindicalismo encontrou espaço para realizar seus anseios, seus ideais de justiça, igualdade e liberdade. Pela fluência dos acontecimentos, em uma época de AI5, tropas nas ruas, mordaças, prisão aos pensamentos contrários, militarismo, e finalmente, abertura, reuniu multidões nos palcos do ABC Paulista e as inebriou com suas retóricas lógicas e retumbantes. O trabalhador sentiu-se um filho protegido por um pai extremamente zeloso e amoroso.
De repente, uma idéia travestida de estrela vermelha: Fundar um partido político, ganhar eleição, entrar no Congresso e mudar o Brasil através de mudanças nas leis.
Saiu ele com a idéia toda vermelha na cabeça a percorrer o país para disseminá-la e juntar adeptos. Em sua primeira visita a Ituiutaba, no início da década de oitenta, subiu em um caminhão velho na Praça Cônego Ângelo e falou com eloqüência  para uma multidão de menos de vinte pessoas.
Eu estava lá. Uma pequena gabiru que também crescera com a barriga cheia de lombrigas nos sertões do Triângulo Mineiro. Filha de pais roceiros e analfabetos, que tiveram a grandeza de trazer seus onze filhos para a cidade a fim de que estudassem. Eu não tinha um neurônio a mais, como ele, mas com certeza, alguma estrutura em meu cérebro era diferente, pois já, naquela época, em que eu tentava sobreviver com o minguado salário de empregada doméstica, tinha uma visão futurista e não me conformava com as injustiças que aconteciam neste país contra a classe trabalhadora. Lia matérias subversivas, me revoltava e não sabia como canalizar minha revolta. Até que ele veio com a solução: a política! Embrenhei-me nela, fundei o Sindicato das Empregadas Domésticas, candidatei-me a vereadora. Até que percebi que não tinha dom para a política. Então pus-me a escrever para, quem sabe, com meus escritos, colocar meus ideais de justiça, igualdade e liberdade na cabeça dos meus leitores.
Naquele ano, o metalúrgico sindicalista sagrou-se o deputado federal mais votado da história do país. Caiu o militarismo. Vieram as diretas já, com Ulisses Guimarães, Tancredo Neves e Ele. Veio a abertura política com José Sarney. Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano não sei o que. Desvalorização da moeda, congelamento, descongelamento. O país afundando. O povo morrendo de fome. Era hora de o gabiru candidatar-se a presidente e salvar a nação. Quase lá! Pena que as mulheres preferiram o mocinho bonito de Alagoas e os homens acreditaram no super-macho que não tinha medo de demitir os marajás.
Confisco do dinheiro do povo. Desespero! Suicídios. Falências. Roubo do dinheiro público. Caras pintadas em verde-amarelo. Impchemmam.
Nova eleição presidencial. Nova tentativa. Nova frustração. O povo preferiu acreditar no ministro que outrora fora preso político, caçado e deportado, mas que agora fazia acordo com banqueiros e patrões. O metalúrgico trabalhador não servia. Ele era analfabeto, comunista, ateu, ia comer criancinhas. Mais quatro anos de marasmo e atraso. Na eleição seguinte o ex-ministro foi reeleito por um plano de controle da inflação. E isso foi tudo que fez em um país tão necessitado dos ideais do gabiru.
Doze anos após a primeira tentativa, finalmente o povo se desvendou, se despiu do preconceito e o elegeu presidente do Brasil. Brasil que se transformou em uma nação respeitada e admirada no mundo inteiro graças ao trabalho dignificante do gabiru de um neurônio a mais.
Veio uma nova eleição e o povo, reconhecido, o reelegeu para mais quatro anos de mandato, de prosperidade e de paz!
Oito anos se passaram e hoje, o povo brasileiro, agradecido, se despede do gabiru de um neurônio a mais que fez deste, um país que nos enche de orgulho de ser brasileiro. 
Naquele seu primeiro comício em Ituiutaba, olhando-o em cima do caminhão, embevecida com a eloqüência de suas palavras, extasiada com suas verdades, deslumbrada com seus ideais de se criar neste país uma sociedade justa, igualitária e sem fome, atirei para ele uma faixa que eu mesma pintara em tecido Amorim, onde escrevi: “LULA PARA PRESIDENTE”. Ele leu-a, sorriu amarelo, fitou-me por alguns instantes, utilizou-a para enxugar o suor do rosto, pendurou-a no ombro e continuou seu discurso inflamado. Senti que, naquele momento, ele não acreditou que chegaria a tanto. Eu também não acreditava que chegaria a ser escritora. E olha nós aí!
Lula orgulha-me saber que, talvez, eu tenha sido a primeira pessoa a lançá-lo presidente deste país. Ainda que você não se lembre, não importa! Isso me enche de orgulho!    

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