O APITO DO BADUY

Naquele dia, um parecido com outro qualquer, também Dona Valnira acordou cedinho e chamou os filhos para trabalhar.
_ Pedrinho, acorde, tá na hora. Agora mesmo o Baduy apita. Neuza levanta. Luzia, já acordou? Nenzinha pula da cama.
Um por um dos quatro filhos adolescentes ela chamava para ir trabalhar. Só as cinco crianças permaneciam na cama. Era bom que dormissem até mais tarde para sentir menos fome e agüentar esperar o almoço.
Viúva, Dona valnira guerreava contra as intempéries da vida, na busca constante de soluções para não deixar os filhos passar fome. Colocou as filhas adolescentes no emprego de doméstica. Assim teriam o que comer, numa época em que essa função era executada por um prato de comida, as roupas velhas que as patroas lhes davam e um minguadíssimo salário.
Mil novecentos e sessenta e quatro. Ituiutaba era ainda, uma menina moça, cheia de sonhos de um futuro radiante, recheado de progresso constante, que chegaria pelas ações de seus governantes da ARENA, partido político que apoiava o golpe militar.
Apesar de ser um progresso que chegava nos passos lentos da história, havia cidadãos tijucanos que acreditavam em sua vinda e aqui investiam seus milhões, ganhos nos árduos anos de mascates pelos sertões do Brasil.
Assim fora com o Sr. Antônio Baduy, que após tantos anos de luta conseguira construir a Indústria de Laticínios Fazendeira. Foram contratadas centenas de operários para beneficiar o leite que vinha das fazendas da região. A cidade pequena crescera em volta da fábrica. Esta convocava seus operários com o apito de uma sirene que aos poucos se tornou fundamental para o funcionamento dos relógios da cidade que eram acertados por ele.
Vidinha pacata e rotineira de levantar cedo, antes do apito do Baduy, para estar lá quando a sirene toucasse para iniciar a lida. Rotineira quando se ouvia o apito das onze para ir almoçar, das doze e trinta para retornar ao trabalho e das dezessete e trinta para retornar ao lar, tomar banho, jantar, dormir e fazer tudo igual no dia seguinte. E no outro dia também. E no outro... E no outro...
Assim era a espera do progresso, que outro cidadão, Lauro Samora, acreditou tanto que viria, a ponto de colocar o nome na fabriqueta que abriu, de: “Móveis Progresso”.  Em nome do seu sonho, contratou alguns funcionários, menores de idade, de preferência, para pagar só meio salário mínimo, e colocou-se a fabricar móveis rústicos e colchões de mola.
Bendito seja ele que deu emprego ao Pedrinho, filho de Dona Valnira e Sr. Augustinho, e lhe ensinou o ofício que o rapaz executa até hoje. Com aquele meio salário, estava garantido o aluguel do barraco onde morava com a mãe e os oito irmãos. O restante das despesas vinha dos minguados salários das irmãs domésticas, das roupas que Dona Valnira lavava e do sabão que fazia para vender.
Pedrinho tinha dezessete anos, muita humildade e resignação para aceitar o destino que lhe fora dado por Deus. Sentia-se responsável pela vida dos irmãos menores e, orgulhoso por poder dar-lhes um teto, não reclamava por sua mãe lhe chamar às seis horas da manhã, nem mesmo quando seu corpo, frágil da fome que passara no dia anterior, lhe pedia para permanecer no leito. Espreguiçava-se e levantava do catre de colchão de palha. Silenciosamente, aprontava-se e seguia seu destino sentindo na boca apenas o gosto de dentes sem escovar, por que o dinheiro não dava para comprar pasta.
Como Pedrinho, muitos homens da cidade, também cumpria suas rotinas de entrar e sair de seu trabalho quando a sirene do Baduy anunciava que a hora havia chegado. Mais que isso, irmanava a miséria e a fome que lhes impunha a vida provinciana de uma pequena cidade de terra vermelha incrustada no sertão do triângulo mineiro, onde as Leis Trabalhistas de Vargas ainda não haviam chegado.
E a sirene apitava... E o povo trabalhava... E a cidade crescia...
E a sirene apitava...
Anos a fio a sirene apitava. Todo dia, nas mesmíssimas horas. Menos domingo e dia santo, que trabalhador não é de ferro e merece um descanso.
Passava dias, passava meses e anos, a sirene continuava a apitar nas mesmas horas anunciando:

_Tá na hora de trabalhar.
E dona Valnira continuava a chamar:
_ Acorda Pedrinho, tá na hora de laborar.
E quando eram dez horas
Ia ela cozinhar,
Porque às onze horas
Vinha o filho almoçar.
...E a sirene continuava a apitar...
Apitar...
Apitar...

Os relógios da cidade desconheciam o horário oficial de Brasília, pois poucos eram os que conseguiam sintonizar seus rádios com o “reporteresso” ( Repórter Esso ), ou com a voz do Brasil, ainda que levantassem suas antenas acima do cume das casas. Todos acertavam seus relógios pelo apito do Baduy. Tudo corria certinho.
Naquele dia também, tudo estava certinho. Dona Valnira acordou os filhos,  levantou-se e foi lavar as roupas das madames. Para tal ofício tirava água em uma cisterna de mais de dez metros de profundidade. Centenas de vezes por dia o balde descia e voltava chorando o excesso de água nos arrancos que o sarilho lhe dava. Neste sobe e desce, perdeu-se em seus pensamentos à procura de solução para encher a panela no dia seguinte. Quando foi colocar as roupas no varal, aproveitou para trocar um dedo de prosa com dona Maria, a vizinha que também tinha marido operário no laticínio Fazendeira.
_ Dona Maria, a senhora vai querer comprar sabão hoje? O que eu fiz ontem ficou uma beleza.
_ Não senhora. O Joaquim ainda não recebeu o salário desse mês e eu ainda tenho um pouco daquele que comprei da última vez.
_ É. Vou ter que mandar as crianças vender na rua pra arrumar dinheiro pra comprar comida pra amanhã.
_ Se eu pudesse, ajudava a senhora. Mas eu também não tenho dinheiro.
_ É. O trem tá apertado pra todo mundo, né?
_ Deus vai dar um jeito...
E eis ele aí outra vez. O apito do Baduy.
_ Nossa senhora!
Gritaram dona Valnira e dona Maria ao mesmo tempo num uníssono sonoro.
_ Já são onze horas? O tempo hoje passou depressa demais. O Pedrinho vai chegar e a comida ainda não está pronta. Eu ainda nem acendi o fogo.
_ E nem eu! Ainda mais que a lenha está molhada da chuva dessa noite. Vai dar um trabalhão pra pegar fogo. É hoje que o Joaquim briga comigo.
Foi uma correria. Só se via as mulheres da vizinhança correndo para pegar a lenha, buscar água na cisterna, lavar o arroz... Em pouco tempo não se via nenhuma vizinha fofocando com a outra na sombra das laranjeiras, ou no terreiro da sala às margens da rua. Fez-se um silêncio mortal. Parecia mesmo que o mundo parara para indagar o que estava acontecendo. Só se ouvia o chiado da fervura das panelas das cozinheiras, que por alguma razão, que nem a razão conseguia explicar, naquele dia deixaram, coletivamente, o almoço atrasar.
A princípio, as ruas se esvaziaram, mas em seguida alguns trabalhadores surgiram retornando para casa para o almoço. Nas ruas, nas oficinas, nos bares, nas praças, nas lojas, enfim, em todos os lugares, houve um espanto generalizado. Os mais abastados levaram a mão em suas algibeiras e sacaram seus relógios pendurados em grossas correntes de ouro, o charme do momento, para acertá-los com a sirene do Baduy que acabara de apitar. Chegavam-nos ao ouvido se certificando de que não estavam parados. Estranhavam o fato de estarem uma hora atrasados, mesmo sem estar parados, mas ainda assim, acertaram-nos com o apito do Baduy, pois confiavam nele acima de tudo.
Os mais desprovidos da sorte de nascer em berço de ouro, não possuíam relógios e dependiam da natureza para analisar a hora. Naquele dia ela errara feio, pois o sol ainda estava muito baixo e as sombras muito compridas, para já ser onze horas. No máximo umas dez, comentavam uns com os outros.
_ Mas o Baduy não atrasa e nem adianta! Será que aconteceu alguma coisa?
Até o sino da igreja repicou só dez vezes! Daí a pouco chegou o coroinha sem fôlego, no final da torre de dez andares da Igreja Matriz de São José, para bater o sino mais uma vez, crente de que o relógio da igreja havia se atrasado.
Até os animais domésticos, naquele dia ficaram desnorteados com a estranha movimentação dos seus donos.
Aos poucos a população foi percebendo a falha da sirene e vieram os comentários:
_ O que terá acontecido?
_ Foi o funcionário que aperta o botão da sirene que ficou louco.
_ Foi para avisar a população que o mundo ta acabando. _ Sentenciou o crente da Assembléia de Deus.
_ Que nada! Foi para avisar que a Revolução do Golpe Militar acaba de chegar a Ituiutaba. Eu até vi um tanque de guerra chegando.
_ O que é isso rapaz? Você tá é inventando. O problema é que o Senhor Antônio Baduy morreu.
_ Não é isso não. Eu fiquei sabendo que é por que a fábrica vai fechar e deu seu último suspiro, digo, apito.
_ Que nada rapaz! O problema é bem mais simples. Simplesmente a sirene estragou. Pela primeira vez, a sirene estragou. Só isso.
 Dona Valnira, alheia a tais comentários, entregou-se à lida de cozinhar seu arroz com feijão para alimentar o filho que agora cumpria o papel de homem da casa. Porém, o Pedrinho não apareceu. Traumatizada com a morte do marido, o coração da pobre mulher se encheu de dúvidas. Já imaginava o filho morto em uma esquina como morrera seu amado marido com um ataque fulminante do miocárdio. Lágrimas começaram a correr-lhe nas faces já marcadas pelo tempo. Desesperada, foi falar com dona Maria.
_ Dona Maria, o Pedrinho ainda não chegou. Será que ele morreu na esquina como o pai dele?
_ Se acalme dona Valnira. Ele não morreu não. O Joaquim também ainda não chegou e muitos homens da vizinhança ainda não chegaram. Sabe por quê? Olha aí na folhinha. Hoje é dia primeiro de abril.






  

  

Nenhum comentário:

Postar um comentário