terça-feira, 28 de dezembro de 2010

QUESTÃO DE HONRA


— Professora, o Quim está chorando.
Que me importa. Tomara que tenha lhe acontecido algo bem ruim, assim ele aprende a não peidar em minha cara quando estou lhe tomando a lição. Bem feito que esteja triste! Eu também fiquei quando lhe ensinei todos os sinônimos do Hino Nacional, e ele não aprendeu nenhum. Em vez de Pátria amada Brasil, dizia a Pátria que me pariu. E o brado retumbante era professora filha da puta. Esse moleque não vai prestar para nada. Vai virar ladrão, levar uma chuva de azeitonas quentes e amanhecer com a boca cheia de formiga. Com muita sorte, irá deixar rabiscado, na parede, um recado, sabe-se lá para quem:
“Sinto uma vontade de chorar ao ver minha mãe e meu filho me visitar. Meu filho vem correndo e me abraça. Não consigo conter as lágrimas. Obrigado pela visita. Graças a Deus eu ainda tenho família. Na cadeia, quem deve e quem teme chora, grita, pede para não morrer. A lei da cadeia é matar.”
Mas eu ensinei tanto que “o sol da liberdade tem raios fúlgidos!” Não aprendeu porque não quis. Eu bem que avisei que ”o penhor dessa igualdade, conseguimos conquistar com braço forte”. O braço forte da lei. A igualdade que nivela pobres e negros nas celas infectas, superlotadas, fedidas a suor, mijo e bosta de rabo sem limpar, mas que bem serve de diversão aos psicopatas que não resistem a uma noite sem gozar. Não sei por que fui abraçar essa droga de profissão. Agora tenho que agüentar esses projetos de marginais. Mas e “o sonho intenso de amor e esperança”?! Será que tem sonho esse moleque desgraçado que só vem à aula para me infernizar? Deve sonhar, sim, que está fazendo sexo com as cadelas esqueléticas que um dia foram abandonadas em algum terreno baldio. Vive fazendo gestos obscenos! Que mais poderia sonhar esse diabo raquítico, gabiru? Que “és um gigante, belo, forte, impávido colosso e que o seu futuro espelha uma grandeza”?! Coitado!!! Não vai passar de um taradinho carroceiro que tem relações sexuais com as éguas em noite de lua nova. Esse é o amor que o catarrento barrigudo vai ter, e a esperança de que, pelo menos, haja o dia seguinte. E o dia seguinte é o “teu futuro que espelha a grandeza” de seus olhos e dentes arreganhados de fome.
E o meu futuro? Qual será? Poderia ter sido brilhante. Casada com um industrial riquíssimo, morando em uma mansão. Cercada de empregados. No entanto, estou aqui de professorinha. Foi o que me restou depois de meu pai ter perdido todo nosso imenso patrimônio. Nem casar eu consegui. E minha mãe, covarde, suicidou-se. E a mãe dele?  Mas é claro que sua mãe é gentil! Não para a “Pátria amada Brasil”, mas para os parias que a Pátria pariu. Bebe com eles. Fuma com eles. Cheira com eles. Goza com eles. Rouba com eles. Quenga adorada, entre outras mil que existe no Brasil, é a melhor, porque não abandona o filho que pariu. A não ser que esteja deitada eternamente no berço esplêndido do xadrez, olhando a luz do céu profundo entre grades e lágrimas, pensando onde andará seu gabiru. Onde andará aquele que concebeu, em uma noite de céu estrelado em um estupro que não pode ser denunciado, porque o maldito era seu padrasto tarado. A mãe ficou sabendo. Preferiu acreditar no safado e deixou para trás a filha e o neto.
— Estará ele com fome? Não. É tempo de manga. Tem muita mangueira na cidade. As frutas apodrecem pelas ruas. Onde estará dormindo? Em meu quartinho sem porta nem janela. A chuva vai entrar sem pedir licença.
Dois dias, sozinho, no quartinho.
— Medo de trovão. Medo de cobra. Medo de bicho.
 “Nossos bosques têm mais vida”. Coberta na cabeça. Lágrimas descendo.
— Maínha, cadê seu seio onde tem mais amores? Por que os meganhas levou você? Quando crescer vou matá-los.
Arrisca um olho pela janela. Lá no alto, o “lábaro que ostentas estrelado. Paz no futuro? Glória no passado”?
— Morte aos tiras que levou maínha! “Verás”, maínha, “que um filho teu não foge à luta, nem teme quem te adora, a própria morte”. Tiro você daí. A gente volta pra Alagoas, nossa terra adorada entre outras mil, a melhor do Brasil. Teus risonhos, lindos campos tinham mais flores, mas os usineiros plantaram cana no estado inteiro e plantaram aqui também. E trouxeram voínho, e trouxeram voínha, e trouxeram maínha. E levaram de volta o voínho e a voínha, mas não levaram a maínha. E maínha teve que ir pra zona, quando eu fiquei doente de fome, e nunca mais deixou de ir. Virou puta.
 Amanhece ”iluminado ao sol desse novo mundo”.
— Ai que fome! Vou para a escola comer. Até chegar a hora do recreio! Vou ficar quietinho para a professora não me por de castigo. Ai que fome!

* * * * * * * * * * * * * * *

— Menino, por que está aí, chorando? Fica brigando com todo mundo! Não tem tamanho nem para um e quer enfrentar cinco. Apanha e fica aí chorando e atrapalhando minha aula tão boa!
— Não, professora, ele não brigou não. Ele está chorando é por que a mãe dele está na cadeia. Ontem o camburão a levou. Eu vi. Ela estava roubando roupa, e a mulher a pegou e chamou a polícia.
— Cale a boca, menino! Isso não se diz na frente dos colegas. É humilhante. Quim venha cá me contar essa história.
Atrás da porta, mão na cara. Agora, fala baixinho! Molha a camisa rota de lágrimas, baba e catarro.
Meu Deus! Sozinho, com sete anos!
— Comeu o quê?
— Manga.
—Todo o final de semana?
— Uma vez o Zé me deu janta.
Chamou a supervisora, chamou a diretora, chamou a inspetora, chamou o Conselho Tutelar.
_ “Tô nem aí, tô nem aí...” Esse moleque está acostumado a ficar sozinho. A mãe vive sendo presa.”
— Sozinho, tu não ficas, nem hás de ficar, porque vou dar-lhe um cantinho bem quentinho no meu lar. Vamos lá, moleque, na sua casa buscar suas roupas.
Casa?! Um quartinho três por três, sem porta, nem janelas, chafurdadas no matagal da periferia entre outros moquiços que abrigam bêbados e prostitutas.
Com ar de preocupação, o moleque corre para um sofá velho, ergue-o e resgata um enorme facão de cortar cana. Sua mãe não o usava para trabalhar, mas para defesa pessoal.
— Maínha falou pra não deixar sumir.
Muita roupa, roubada nas lojas do centro da cidade. Separa esta e aquela. Tênis, brinquedo, foto amassada, amarelada. Lembrança dos poucos minutos felizes que viveu em sua curta história de vida.
Uma voz grossa de bêbado adentra o ambiente.
— Moleque, onde você pensa que vai?
— Para a casa da professora.
— Vai a lugar nenhum. A polícia me mandou tomar conta de você.
— Então, manda a polícia ir buscá-lo em minha casa. Conheço você desde criança, Zé. Sei de sua fama. Quando a polícia vier prendê-lo por bebedeira, roubo de cavalo ou por estar espancando as vagabundas que se arriscam a morar com você, com quem o Quim vai ficar?
— Ô, gente boa! Pode levar o moleque. Na paz! Na paz!
— E se perturbar, eu coloco você na cadeia por pedofilia. Amanhã, buscaremos a mudança para não ser roubada.
— Pode deixar gente boa. Eu tomo conta de tudo.
No dia seguinte, só as cinzas. Vingança da prostituta lésbica, drogada, alcoolizada, cornada e trocada por um moreno alto, gostoso, bêbado, ladrão, viciado e violento. Apanhavam maínha e filhinho também
No garimpo, algumas peças de roupas, calçados e, por muita sorte a bolsa de documentos.

* * * * * * * * * * * * * * *

 Na escola, o moleque era o cão chupando manga. Passava a aula inteira atrás da porta.
— Fica aí, moleque. Esse é o castigo. Aula tão boa! Passei tudo no quadro que antes era negro e agora é verde. Era só copiar. Mas preferiu brincar. Agora, fica aí, atrás da porta, de castigo.
Calor. Fome. Sede.
— É pra aprender!
Agora...
— Professora, quer que eu lave as vasilhas?
— Professora, quer que eu ajude lavar roupa?
— Professora, vou limpar a casa.
Um momento de isolamento. Olhos tristes perdidos no nada. O que pensa?
— Na maínha, professora. Quando ela sair da cadeia, vou falar para ela não roubar mais e rumar um serviço. Aí eu vou vender picolé para ganharmos dinheiro e voltar para a casa do voínho e da voínha, lá em Alagoas.
— Está com saudade deles?
— Estou. Voínho e voínha me davam comida, e não deixava a maínha trabalhar de fazer programa. Nós temos que voltar para lá.
Céus! O garoto pensa!
Na escola...
— E aí? Como é que está o capeta em forma de guri?
— Está um anjo.
— Ainda não colocou fogo na sua casa?
— Não. Só lavou, passou, arrumou, cozinhou e estudou.
— Está mais bonito o moleque!
— Porque tomou banho. Desencardiu.
— A barriga diminuiu!
— Dei-lhe lombrigueiro.
— Para o seu bem, manda esse moleque embora. Mais tarde, vai lhe dar problema.
— Mando. E mais tarde, vai lhe dar problema. Entra na sua casa, lhe rouba e estupra suas filhas. Com muita sorte, vocês saem vivos.
Entreolhares, e fim de conversa.
A vizinhança...
— Ai, meu Deus! Nossos filhinhos, tão limpinhos, tão educadinhos, vão aprender o que não presta com este trombadinha, encardidinho, taradinho...
— Ô, dona, esse moleque fez isso e fez aquilo!
— Abriu o portão e deixou um vira-lata cruzar com a minha poodle. Imagine se vou deixar a minha filhinha que tem pedigree ter filho de um vira-lata. O veterinário cobrou tanto para fazer o aborto. Ou você paga, ou vou para o Juizado de Pequenas Causas e “grandes injustiças”.
— Esse moleque, desgraçado, cortou o pneu do meu carro. Claro que eu não ia deixar meus filhinhos tão educadinhos brincarem com o filho de uma puta, ladra e drogada. Aí, pra se vingar ele cortou meu pneu.
— Dá um jeito nesse capeta, para não apanhar mais as flores do meu jardim. Senão, acabo com a raça dele.
Na hora da bronca...
— Professorinha, trouxe uma flor para você!
Beijo babado. Lágrimas nos olhos da professora.
Reação...
— Êpa! Capeta, não! É apenas uma criança. Só precisa ser educada!
— Então educa!
— Estou tentando.
À noite, na cama, cansado das traquinagens, dorme um sonho, talvez sem sonho. Com o olhar fixo, tenta decifrá-lo. E chora...
— Ai, meu Deus! O que eu fiz? Coloquei de castigo quando não quis escrever porque sentia fraqueza de fome. Dei safanão porque sujou a cartilha. Mas sua mesa era o chão. Castiguei quando falava os palavrões que aprendera com os parias com quem convivia. Humilhei-o por não aprender coisas que eu ensinava, mas que eram completamente fora de sua realidade. Eu fui um monstro!!!
Um mês sem fome, frio, medo... Um mês de pão, calor humano, proteção, computador, televisão, vídeogame, jogos didáticos, internet, museu, cinema, revistas, informação...
— Professorinha, eu escrevi para você.
“Fesoria, eu amo tu, tu é muto boíta. Se maia nu saí da caeia, kero q tu seja mia mãe, u bejo quim”.
Dois anos de quadro, giz, saliva e nada. Um mês de amor, informação, compreensão e tudo.
Mudança de conceito. Mudança de pedagogia. Vitória.
A mãe saiu da cadeia nem deu as caras. Quando deu, fez chantagem emocional.
— Se meu bichinho fica na sua casa. Fico eu também, que eu gosto muito dele.
— Aqui você não fica, nem hás de ficar, porque é um mau exemplo, seu filho vai prejudicar.
— Se maínha vai, eu vou também. Não largo minha maínha por ninguém.
Coração partido. Vidas divididas. Tudo volta ao normal. Fome, miséria, hematomas do novo padrasto vagabundo, alcoólatra, cafetão. Prostituição, drogas, bebedeiras, roubos...
Nada volta ao normal. Preocupação, saudades, lágrimas, indagação:
_ Como salvá-los?
Conclusão:
_Salvando a mãe.
Conselhos, psicólogos, alcoólatras anônimos, clínicas de recuperação, banho, salão de beleza, boutique, perfumes, academia, escola, educação e um emprego. Seu primeiro emprego. Recepcionista de um hotel.
Finalmente conseguiu juntar dinheiro para voltar a alagoas. “E o sol da liberdade em raios fúlgidos, brilhou naquele instante”. Liberdade de escolher entre ficar e partir. Escolheu o colo materno, apesar de tudo.
E o sol brilhou no instante em que eles entraram no avião com suas passagens de segunda classe, que os levaria de volta à terra natal. “Um sonho intenso, um raio vívido de amor e esperança a terra desce”. Esperança de chegar a Alagoas e encontrar sua família receptiva e de braços abertos para recebê-los.
O avião corta “o formoso céu, risonho e límpido, onde a imagem do cruzeiro resplandece”. Destino: A esperança de uma vida melhor.
A professora olha o horizonte vendo o avião subir. Vê o aceno de uma mãozinha já sem traço de subnutrição. Nas ondas sonoras um sussurro no ar. “Adeus fessorinha, um dia eu volto”.
Lágrimas.
_ Questão de honra: Salvá-los. Será que salvei?
“Salve lindo pendão da esperança!”
“Pátria amada”.
Partiu!

FLOR DE MURICI

Era sábado. Dia de tomar banho. No ribeirão era uma beleza! Divertia-se e arrancava-se as crostas de sujeira acumuladas durante a semana, rolando-se na areia branca da beira do rio. O melhor lugar era na curva em forma de ferradura, onde havia um poço e uma praizinha.
Uma semana de trabalho pesado na lavoura de sol a sol. No fim da tarde, os corpos moídos atiravam-se nos jiraus fincados no chão de terra batida da choupana de pau-a-pique, coberta com capim. Não se davam ao trabalho de lavar sequer os pés, pois não tinham o que não sujar nem para quem ficar limpos. Eram só eles naquele canto do Grotão.
Dormiam sem sonhar com um dia seguinte farto. Acordavam para trabalhar. Trabalhavam para enriquecer o patrão. Só encontravam os outros moradores do Grotão aos domingos para a diversão.
Outrora, quando terminavam a lida mais cedo, reuniam-se à sombra do ipê-roxo. O velho pai, nordestino, fugitivo do agreste, donde até a Asa Branca bateu asas e voou, dedilhava a velha viola e cantava, com voz rouca e desafinada, a música de Otávio Rodrigues, um cantor e compositor lá do Sul.

“As sementes dos meus dias
Espalhei por este chão.
Cumpri-me como vivente
Mas não vi a plantação.

Nos remendos da esperança
Remendei a minha vida,
Mas um dia a vida cansa
De ser rasgada e cerzida

Ganhou véus de sementes
Minha mulher no labor.
Amando me plantei nela,
Nasceu um novo semeador.

Abrindo sulcos na terra,
Sementes eu lancei a esmo.
Esta terra está pedindo
Que agora eu plante a mim mesmo.”

Aprendeu-a numa única vez que a ouviu tocando no rádio da casa do patrão, quando por lá estava a serviço de jardinagem.
A família em volta. Mulher, dois filhos rapazes, com dezoito e vinte anos: duas filhas ficando moças, com treze e quinze, e dois filhos crescendo, com quatro e seis anos.
_ Êta vidinha mais ô meno! Inté parece frô de murici! _ dizia Zé, o filho mais velho, e ia se atirar no jirau de taquara e sonhar com as mocinhas da cidade.
Sábado não. Sábado era diferente. Tinham folga do labor na parte da tarde. Precisavam se preparar para a diversão do domingo.
Zé, sentado à beira do ribeirão, olhava a família brincando na água e as formigas carregando folhas num metódico vaivém de uma trilha aparentemente sem começo nem fim. Questionava o começo e o fim do mundo, de suas vidas, do céu e da terra, do dia e da noite, da flor de murici...
_ Êta vidinha mais ô meno! Inté parece frô de murici!
A vidinha mais ou menos mudou para menos do que mais, quando amanheceu o dia e Dona Maria não acordou. No cortejo funeral, apenas a família e alguns vizinhos para plantá-la na parte daquele latifúndio que lhe cabia. Uma cova rasa e pequenina no pé da serra. O velho pai nunca mais cantou sob a sombra do ipê-roxo.
Um ano após o acontecimento, era sábado. O resto da família brincava no ribeirão. No meio da ramagem um par de olhos sedentos, fixos na menina mais velha, devorava seu lindo corpo de donzela ficando moça. Queria namorá-la, mas foi rejeitado. O bicho era feio demais e ainda tinha uma cicatriz desfigurando-lhe a face. Levou uma foiçada de uma cortadora de cana que tentou estuprar.
No dia seguinte tinha jogo. Grotão versus Barro-Fundo. Os jogadores do Grotão foram dormir no Barro-Fundo para jogar no domingo bem cedinho, antes do Sol esquentar. Foram o velho pai e os dois rapazes com os demais homens da vizinhança. Os dois meninos dormiram na vizinha, para lhe fazer companhia, e as duas mocinhas ficaram sozinhas.
O jogo terminou antes da hora. O juiz, que era de Grotão, estava roubando. Tentaram matá-lo. Acabou a farra. Todo mundo para casa. No próximo domingo quem iria apitar o jogo era o juiz de Barro-Fundo e os jogadores do Grotão tentaria matá-lo.
_ Êta vidinha mais ô meno! Inté parece frô de murici! _ Exclamava Zé, decepcionado.
_ Pai, quede as minina? _ Pergfuntou o irmão mais novo com estranheza.
_ Sei lá. Devi de ta aí pru mato.
 Disse o pai, entrando no quarto. O velho soltou um grito e seu corpo desabou no chão. Correu o Zé. Correu o irmão. Irmão começou a gritar. Teve um surto de loucura. Zé, com as mãos na cabeça, olhos esbugalhados, correu para perto da cama pasmo, atônito, impotente. Vomitou diante da cena tão terrível, tão grotesca! A cabeça da irmã mais velha presa ao resto do corpo por uma pele do pescoço, e a da mais nova nem isso. Havia rolado para o meio da cama.
_ Golpe de facão. _ Disse a polícia. _ E foram estupradas. E o safado comeu suas tetas e enfiou-lhes gravetos nas vaginas.
O velho pai nunca mais andou. O irmão mais novo nunca mais raciocinou. A criança mais velha nunca mais escutou. A criança mais nova nunca mais enxergou. E Zé, na vidinha mais ou menos, nunca mais uma só flor de murici apanhou.
A macabra história virou música na voz de cantores sertanejos inexpressivos.
Mudaram-se para um moquiço de uma cidade de cinqüenta mil habitantes, onde toda a vizinhança ajudava um pouquinho. Zé, o único que sobrou com raciocínio, furava valetas para canalização de água e esgoto. Ganhava salário mínimo e o mínimo que fazia era cuidar da família inteira ou do que sobrou dela. À noite estudava e dormia sobre os livros. Aprendeu em tempo recorde.
Dois anos de vidinha menos e o velho pai não resistiu. Zé o enterrou em uma cova para indigentes. Chorando, internou o irmão mais novo no hospício e entregou as crianças para adoção.
Liberdade para estudar. E estudou. Só estudou. Não viu à sua frente uma só mocinha da cidade. Fez direito. Virou detetive. Virou promotor. Virou delegado. E, como tal, começou a procurar:
_ Aqui Cicatriz não está.
_ Transfere-me para outro lugar.
_ E para outro.
_ Este não serve.
_ Aqui também não está.
_Manda-me para outro lugar.
De um extremo a outro do país o rapaz foi trabalhar. Investigou, pesquisou nos jornais, ouviu pessoas, fez acordos com bandidos, entrou em cada presídio, xeretou em cada favela. Onde havia um estupro o Delegado estava lá para investigar. Nunca mais Zé dormiu sem sonhar.
Um dia, o delegado encontrou o Cicatriz atrás das grades, em uma cidadezinha no fim de um sertão. Inventou uma transferência e o levou o assassino de sua vidinha flor de murici para o Grotão. Chegou o dia tão sonhado. Estava tudo planejado. Primeiro, arrancou-lhe o membro, pedacinho por pedacinho, ouvindo os berros do assassino. O maldito membro! Tudo por causa dele. Agora em seu lugar só um buraco sangrando. Entupiu-o com gravetos, deliciando-se com cada grito horrendo de dor. Depois foi tirando-lhe a pele, devagarzinho, sem nenhuma pressa.
_ Não tem mais pele? Acabou?Nem na sola dos pés?Que pena!
Então lhe abriu a cicatriz profundamente, enquanto o meliante bufava já prestes a desmaiar.
_ Não! Não vai desmaiar agora não! Tem que testemunhar uma coisinha. Veja o que vou fazer...
Meteu-lhe a navalha no peito, abrindo um sulco enorme. Enfiou a mão dentro dele e arrancou-lhe o coração. Levou-o à boca, ainda batendo, e o devorou, dando risadas. No fim de tudo, com um golpe só, cortou-lhe a cabeça com o facão de cortar cana. O corpo despencou, mas a cabeça continuou pendurada no pé de ipê-roxo.
A vidinha de Zé agora já não é mais ou menos. Ele prende bandidos e mata os estupradores no paredão, em noite de lua nova, com a metralhadora que ganhou de presente de um traficante. Sobre a cova rasa planta um pé de murici. Em seu jardim já há mais de dez dando flores amarelas e sem graça.
_ Moço, acorda, já cheguemo. O sinhô me dá licença pá passa?
Zé, suado e atônito, acordou do pesadelo que o acompanhava em todos os sonos, desde que tudo acontecera. Levantou-se e deu passagem para a mulher de cabelos enrodilhados em coque. Sentou-se novamente e ficou olhando o nada. Sobre o banco ao lado, um papel deixado pela passageira vizinha. Utilizou-o para limpar o suor.
_ O senhor não vai descer do ônibus? _ Perguntou-lhe o motorista. _ Precisamos ir embora para a garagem.

Desceu apressado, levando consigo o papel da passageira. No táxi pôs-se a lê-lo:
“Então disse eu: Senhor, que farei? E o Senhor disse-me: Levanta-te, e vai a Damasco, e ali se te dirá tudo o que te é ordenado fazer.” (Atos 22.10).
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal: mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. Ouvistes que foi dito: Amaras o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, para que sejais filhos de vosso pai que está no céu.” (Mateus 5, caps. 38 a 42).
“Os meus olhos desfaleceram pela tua salvação e pela promessa de tua justiça. Sou teu servo: dá-me inteligência para entender os teus testemunhos.” (Salmo 119, caps. 123 e 125).
Zé encontrou o seu procurado atrás das grades, em uma cidadezinha no fim de um sertão. Inventou uma transferência e levou o assassino de sua vidinha flor de murici para o Grotão. Chegou o dia tão sonhado. Estava tudo planejado. Mas, olhando para o tarado, só via a mulher de cabelos enrodilhados e os escritos de um papel amassado e sujo de seu próprio suor. Chorou, ajoelhou e suplicou:
_ Dá-me inteligência, Senhor, para entender os teus testemunhos.
“E em seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém.” (Lucas 24.47).
Zé começou pelo Grotão. Trancou o psicopata em uma cela, que mandara edificar ali mesmo, e pôs-se a pregar-lhe a palavra da Bíblia. No começo o meliante pensou ser uma armadilha, mas aos poucos, embevecido com os ensinamentos de Cristo, Nosso Senhor, perdeu a ferocidade e ganhou a humildade.
A vidinha de Zé, agora, já não é mais ou menos. Ele prende bandidos, e os estupradores leva para o Grotão, onde, no lugar da cela, ergueu um templo de adoração ao Senhor Deus. Salva suas almas, pregando-lhes a palavra de Jesus e sustenta seus corpos com os muricis que os recuperando plantam para vender às indústrias de suco.
“E os que recebem a semente em boa terra são os que ouvem a palavra e a recebem, e dão frutos, um a trinta, outro a sessenta, outro a cem, por um.” (Marcos 4.20).
_ Palavra da salvação. 
 
DIANTE DOS OLHOS

            O pobre estava ali, no derredor da Estação Rodoviária. Debaixo de um coqueiro imperial, sobre a relva já úmida pelo sereno da noite que prenunciava geada. Esfarrapado, enrolado em um cobertor mais para baixeiro depois de um mês levando boiada, que para cobertor propriamente dito.
            Tremia o miserável de trinta anos de idade. Pelo frio que fumava tornados em suas narinas, ou pelo efeito alcoólico de dias e dias entornando. Talvez pela falta do alimento que se negava a ingerir desde o seu infortúnio.
Sentara em sua cadeira de balanço com ela nos braços, em coma, até que se expirasse sua última respiração.
            Ainda podia ouvir músicas e gargalhadas enquanto bailava com ela pelo salão do clube da cidade. Quando chegavam, o público abria roda para ver o jovem de vinte anos bolerear com sua dama de cinqüenta. Olhares esgazeados, cochichos e risos zombeteiros, mal deitavam os olhos naquele casal esdrúxulo.
            Conhecera-a por acaso quando seu carro quebrou em uma estrada de terra vermelha. Tentara consertá-lo, mas entendia pouco de mecânica e o jeito foi apontar o polegar.
Vieram a prosear. De prosa em prosa percebeu que aquela senhora tinha fogo debaixo da saia. “Porque não” ? Pensou. “Daí pelo menos não vai sair um par de chifres”.
Gostou. Gostou muito. Como carrapicho não desgrudou mais. Era diferente. Maduro. Tranqüilo. Respeitoso e seguro. Da pequenina semente plantada, nascera um enorme e frondoso pé de jacarandá. Quem podia imaginar?
            Ria com ela. Brincava com ela. Comia com ela. Conversavam até altas horas. Passeavam, dançavam e viajavam nos gemidos de amor e no gozo incontrolável de final de sexo. Tinha por ela um estranho desejo que não sentira por nenhuma outra formosura. Não sabia definir a força de sua atração e de seu amor. Talvez as decepções amorosas sofridas com os amores de sua idade.
Os amigos, incrédulos alertavam:
_ Você está louco rapaz? Apaixonar-se por uma mulher trinta anos mais velha! Quando você tiver cinqüenta ela terá oitenta. Morre e você fica sozinho.
Convicto respondia-lhes:
            _ Se ela morrer, morro com ela.
Até então era um poço de frustração. Amara a mais linda flor de sua juventude e pesara estar sendo amado também, mas sentiu seu sol perder o brilho quando a viu nos braços de outro. Abandonou-a e entregou-se à vida boêmia, usando todas e não se entregando a nenhuma.
            Antes, no seu primeiro sexo, apaixonara-se pela primeira namorada. Caso de amor ardente. Fervilhavam-lhe as entranhas e ceifava-lhe o raciocínio. Imaginava-se envelhecendo ao seu lado. Mas veio o vento seco do outono e como as folhas que cai, ela também caiu na vida.
Peito rasgado, alma cerzida, pensou nunca mais se levantar. Se pelo menos a mãe estivesse ali? Mas não estava. Havia ido morar no jazigo 355.
            Era uma tarde de inverno. Foi à beira de seu leito beijar-lhe a face e a sentiu-a enrijecida. Notou seu olhar fixo em um ponto qualquer. Cobriu-o com a mão e abaixou suas pálpebras. Apenas murmurou: “descansou mãezinha?”. Ver o caixão baixar na sepultura, nunca uma dor doera tão forte.
            Nem quando caíra do cavalo e quebrara a perna, naquela tarde de Folia de Reis quando a tradição do Recanto mandava a criançada apostar corrida de cavalo e seu pai, orgulhoso do filho macho, não se importando com sua tenra idade, montara-o em um manga larga e dissera-lhe:
            _ Vai lá campeão. Mostra que você é valente!
O campeão esborrachou-se no chão na primeira curva da estrada e sua valentia esvaiu-se em lágrimas de dor. O pai não teve tempo de sentir decepção. Precisava acudir seu pequeno campeão.
            Valente ele fora ao nascer de um parto prematuro de sua mãe hipertensa. Dois meses em uma incubadora entre a vida, a morte e as orações fervorosas de seus pais. Ganhou as orações. Ganhou a vida, para felicidade do casal que já havia tentado outras cinco vezes inutilmente.
            A alegria do lar tinha uma vida farta e tudo para viver feliz. Agora estava ali, debaixo do coqueiro imperial, sobre a relva molhada da Praça da Estação Rodoviária, enrolado em seu baixeiro, com esta mesma vida a desfilar diante de seus olhos e se apagando, se apagando, se apagando...     



CHICO TAPERA E ZÉ DO RANCHO

Eram irmãos e nunca se separaram, apesar de viverem discordando um do outro. Não se casaram para um cuidar do outro.
Os dois matutos quase não iam à cidade. Tinham uma rocinha de milho, outra de arroz e outra de feijão que davam para o sustento. Além disso, plantavam também as frutas, os legumes, as verduras e criavam porcos, galinhas e umas vaquinhas que davam o leite para o queijo, o doce, a qualhada e as quitandas. Dos porcos aproveitavam a carne e a gordura com a qual cozinhavam e com a buchada faziam sabão para a higiene. Das galinhas aproveitavam os ovos, a carne e as penas para fazer travesseiros e até colchões para seus catres. Quando matavam uma vaca aproveitavam tudo. Até o couro era curtido para fazer chinelos, arreios para os cavalos e capangas para carregar suas tralhas.
A diversão dos dois era a pescaria aos domingos. Era quando mais conversavam.
_ Ô Zé, tô achano que fisguei uma traíra das grandes!
_ Ocê tá é de papo. Devi de tê fisgado foi uma moita de ramo, sô!
_ Ocê tá é cum inveja, pruque ocê é rim de pesca de dá dó.
_ Rim de pesca é ocê que só pesca piabinha.
_ Pelo menos a gente tem umas piabinhas pra cumê e variá o arroiz cum feijão e quiabo.
_ Mais a gente tem tomem a carne dus poico...
_ É. A carne das galinhas...
_ Das vaquinhas...      
Os dois matutos tinham quase tudo que precisavam para viver naquele lugar sem ter que ir à cidade. Só iam de vez em quando vender a sobra dos seus produtos para comprar outros que não tinham. Por exemplo, as roupas, as botinas, os chapéus, as panelas, os cobertores. Aí eles pegavam o trator, única condução que possuiam, engatavam a carroceria, enchiam de mercadoria e davam uma chegadinha na cidade. Viajavam quase um dia inteiro, para chegar.
Naquele dia Chico Tapera levantou cedo, coou o café, bebeu, fez um cigarro de palha, acendeu e foi para a casa do Zé do Rancho. Encontrou-o lavando o rosto na bica e foi logo dizendo:
_ Ô Zé, ocê se apronta que nóis vai na cidade compra uns trem.
_ Quis trem sô. Nóis num ta pricisano de nada!
_ Eu tô sô. Eu tô pricisano de umas cubertas. Essa noite meu catre tava frio dimais sô! E ocê viu onte de noite aquela rodela vermeia inroda da lua? É pruque vem frio dus brabo puraí. Pricisamo priviní. Que ocê sabe, antes priviní du que remediá.
_ Ocê tá pricisano é de uma muié fogosa pra te isquentá.
_ Ocê para de me amolá com essa histora de muié. Que ocê sabe que eu num quero muié ninhuma. Que muié só dá trabaio pra gente.
_ Mais tomém ajuda a gente. Lava nossas ropa, faiz a cumida e tomém fais cafuné. Qué mió?!
_ Quero vivê minha vida sem tê muié pra mandá nimim.
_ Apois eu ainda vô arrumá uma muié bem bunitinha pra me isquentá nu frio.
_ Mandá nocê, te ponhá chifre! E vamo pará  quesse assunto queu já tô é cum reiva!
_Ora sô! Só pruque aquela sua namorada te largô no artar nu dia du seu casamento, num quer dizê que tudo que é muié seja iguale!
_ Eu já falei pramode ocê muda de assunto sô!
_ Ta bão! E o quê que nóis vai levá pra vendê e arranjá dinheiro pra compra as tar cuberta?
_ Bão! A gente pode levá melancia.
_ acho mió levá laranja.
_ Ara Zé! Ocê é sempre do contra, né? Melancia é mió pruque vende mais dipressa.
_ Laranja é que vende mais dipressa.
_ Ô Zé teimoso, melancia vende mais dipressa fio, pruque a fruita é grande. Já pensô quantas laranja cabe no lugá de uma melanciona daquelas.
_ É mesmo sô! Eu num tinha pensado nisso!
Lá foram os dois com a carreta do trator abarrotada de melancia. E depois da feira, saíram andando com os bolsos abarrotados de dinheiro. Quem via nem imaginava que aqueles dois matutos, com roupas surradas, suadas e sujas, botinas rasgadas e cheias de fezes de vaca, tivessem dinheiro para comprar mais que um palmo de fumo de corda para fazer cigarro de palha.
Entraram em uma grande loja que tinham montanhas de cobertores em exposição na porta. Assuntaram daqui, assuntaram dali. Olharam os preços que estavam expostos nos cobertores. Circularam pela loja inteira e nenhum vendedor ou vendedora veio atendê-los. Só o segurança da loja os acompanhava à distância. Aproximaram-se de um vendedor e Chico Tapera falou:
_ O moço pode me vender umas cuberta?
_ Olha moço, aqui só tem cobertor caro, mas ali na esquina tem uma lojinha que vende uns bem baratinhos. Vai lá, vai! _ Respondeu o vendedor com arrogância.
Eles foram, entraram e foram recebidos por uma vendedora gorda, de óculos, com uma cara alegre e bonachona. Ela veio recebê-los na porta e foi logo dizendo:
_ Vamos entrar. De que estão precisando? É só falar que eu arrumo.
_ Bão moça, pricisano, nóis tá pricisano de muita coisa, mais nóis veio comprá  mesmo é cuberta, pruque o tempo tá anunciano que vem muito frio puraí.
_ Então veja estes cobertores. São uma beleza! Quentinhos que dá gosto! Êh Sô Zé! Com um cobertor desses o senhor nem vai precisar de uma mulher para esquentá-lo!
_ Ô Chico, essas cuberta num é das mesmas que o moço da loja grande falô que nóis num ia dá conta de pagá? _ Falou Zé do Rancho meio cochichando.
_ Num é que é! _ Respondeu Chico Tapera adimirado. E voltando-se para a vendedora:
_ Quanto é moça?
A moça deu o preço e Chico Tapera matutou:
_ Hum! Tá mais caro que lá na otra loja. Mais cumo aqui a gente é gente, então eu vou comprá. A senhora imbruia deiz.


WISK

Sueli era uma jovem faceira e linda. Pequenina e delicada parecia uma bonequinha de porcelana chinesa. Possuía uma alegria de viver que contagiava todos que a rodeava. Vivia brincando com as pessoas e rindo de suas próprias piada. A pobreza em que vivia com sua família nunca a impediu de ser feliz. Era a alegria da casa até mesmo quando lhes faltava o feijão de cada dia. Se o Zildo, dos dez irmãos, o mais inconformado, reclamava, ela dizia:
_ Não fique triste meu irmão. Veja o lado bom da coisa, se você não comer feijão, não terá gases mal cheirosos para soltar e sua namorada não vai terminar o namoro com você.
_ Grande consolo. _ Respondia ele irritado. _ Pois eu prefiro morrer de tanto gás na barriga, do que ter que passar fome. E eu não tenho namorada que ainda sou criança!
_ A gente não passa fome. A mamãe não deixa.
_ Mas não temos feijão para comer. E o que temos é comida catada no lixo dos botecos de verdura.
_ Hoje temos arroz e mandioca.
_ Detesto mandioca.
Sueli não se dava por vencida. Discutia até encontrar argumentos para alegrar o irmão.
Muito jovem começou a trabalhar, conhecer o mundo e o mundo lhe conhecer. E do mundo vieram as fantasias, as alegrias, as tristezas, as desilusões, os amores e dissabores.  Mas Sueli caminhava olhando pra frente com dignidade. Amando e às vezes sendo amada. Se doando e às vezes recebendo em troca migalhas de sentimentos deturpados que nem sempre conseguia entender. Falsos sentimentos em troca de um corpo de boneca. Porém, nada conseguia apagar seu jeito alegre e contagiante de viver.
No bairro Progresso, onde morava, era conhecida por todos. E havia quem se enciumava dela com seus maridos mal-laçados em seus casamentos mal-casados. Diziam as dedicadas e amorosas esposas que Sueli era regateira. Que não podia ver um par de calças e já se engraçava por ele. A questão era que todos os pares de calças do bairro, sonhava em ter como esposa uma bonequinha alegre, feliz, sempre de bem com a vida e que nunca rejeitava um copo de cerveja, entre risos e música sertaneja em um final de tarde na porta de um boteco qualquer.
Sueli era feliz e desejada. Odiada e rejeitada. Mas sua vida era movida pela paz e o amor. Era ingênua e pura. Vivia ajudando as pessoas mais carentes que ela. Aos domingos, dedicava-se a cortar os cabelos dos velhinhos do Asilo. Com eles dançava, cantava, contava piadas, ria e se divertia. Mas o povo do bairro Progresso não sabia disso. Ela não contava. Pra quê? Ninguém ia acreditar! E depois, não fazia caridade para se vangloriar.
Um dia desses em que o sol parecia determinado a derreter a terra, a jovem, vindo a pé, do centro da cidade onde trabalhava em um salão de beleza, subiu o pequeno morro da Avenida Treze entre as Ruas Trinta e Seis, e Trinta e Oito, parou no boteco situado no meio do quarteirão, perto de sua casa, e quase sem fôlego pediu ao botequeiro:
_ Manoel, me dê um copo de água bem gelada. Estou morrendo de sede. Não agüento chegar em casa.
_ Pois não Bonequinha. Não vou deixar essa bonequinha morrer de sede, vou?
_ Fica falando assim. Se sua esposa ouvir, me esgana.
_ Que nada! Ela não tem ciúme de você.
_ Sei não. A mulherada desse bairro todo tem, por que ela não teria.
_ Por que ela sabe que eu só te admiro. Mas amor eu sinto é por ela. Aqui está a sua água.
Como a água não estava bem gelada, Manoel fez a gentileza de colocar algumas pedras de gelo no copo.
_ A água não estava bem gelada. Coloquei gelo pra ficar bem fria. Cuidado para não engolir as pedras de gelo, pois já vi gente morrer engasgada com isso.
_ Deus me livre! Exclamou Sueli sacudindo o copo. Tomou a água e encheu-o novamente. Ficou por ali, bebericando e jogando conversa fora com o botequeiro.
Um freguês entrou no boteco e pediu uma caixa de fósforos. Enquanto o Sr. Manoel atendia-o, Sueli foi para a porta com seu copo de água com gelo. De lá avistou sua amiga Elaine varrendo a calçada de sua casa, do outro lado da esquina. A jovem levantou o copo e, brincando gritou para a amiga dando risada:
_ Ô Elaine, vamos tomar Wisk?
_ Agora não posso, estou ocupada. Respondeu a moça rindo também, pois conhecia bem a amiga e sabia que ela estava brincando.
Neste momento estava passando na rua uma mulher de meia idade, saia abaixo dos joelhos e sobrando gorduras que tentava esconder sob uma blusa bem larga. Ela olhou para dentro do boteco, apertou o passo e virou a esquina quase correndo.
O freguês pegou sua caixa de fósforos, acendeu um cigarro e foi embora.
Sueli voltou para o interior do boteco e retomou sua conversa com o Sr. Manoel entre brincadeiras e risos.
Daí a cinco minutos entrou no boteco uma mulher grande e forte, com cara extremamente zangada. Agarrou Sueli pela gola da camiseta e berrou com ela:
_ Puta desgraçada, é você que estava tomando wisk  com meu marido, não é?
Antes que Sueli respondesse, aplicou-lhe três tapas estraladas na cara. Virou as costas e saiu esbravejando:
_ Hoje eu mato aquele desgraçado!
Uma semana depois se divorciou do marido.

  
O ALIENÍGENA

Brota de dentro, parecendo mesmo o pé de feijão do mundo mágico. Sob a luz da lua, ergue-se numa velocidade... Não é isso, não é isso... O que será, então? Serão as flores do campo que exalam um perfume sem igual? Ou talvez, quem sabe... Não sei... Só se for o... Não é isso... O que será, então? Está aqui, querendo sair. Vai sair pelo estômago. Abrir a carne e saltar para fora, como um alienígena. Mas vai continuar grudado no corpo. Só um olho na cabeça, preso a meu corpo por um gordo cordão umbilical. Debatendo-se por todos os lados, olhando, procurando, buscando. O quê? O quê? Uma idéia. Uma palavra. Um som. Um sentimento. Aqui não está. Aqui também não. Meu Deus! O que é isso?
Vontade de fugir... Talvez de mim mesma. Subir as montanhas. Sentir a brisa. A brisa que fala... Não é isso, não é isso... O que é isso, então?
Um pedaço de papel branco, catado no lixo, tinge-se de muitas cores. Ora caneta vermelha, ora azul, ora lápis grafite. Não importa. As palavras mal traçadas vão sendo rabiscadas. Vindas de dentro. Vindas do âmago, vindas das entranhas, vindas do hino nacional. O que tem a ver a Pátria amada Brasil com a Pátria que lhe pariu?
Lá vem... Lá vem... Lá vem... Está chegando... Chegou... A caneta desliza freneticamente, sobre o papel do lixo, e desenha sentimentos, ora ternos, ora brutos. O olho alienígena busca, ávido, imagens que não estão no exterior. E, então, enxergo, desenhado na parede branca da sala de aula, um turbilhão de imagens, como se fossem meus olhos refletores, projetando-as e assistindo-as, ao mesmo tempo, encantados com sua própria criação. Registro-as, no papel sujo e amassado que catei no lixo, nesse momento de extrema indagação, de extrema criação.
Os rabiscos saem... As palavras saltam de meus olhos refletores, de meu cérebro em turbilhão, na sala de aula. Tenho que parar, explicar a matéria. O aluno pergunta. Mando calar. Meus olhos não se levantam. Agora, não estão refletindo. Estão ali, grudados no papel amassado, sendo tingido pela grafite ou pela tinta vermelha de uma esferográfica, que desliza velozmente, comandada pelo pulso servil de um cérebro que fervilha uma história não vivida. Levanto-me, vou ao quadro, encho-o de giz. Explico a matéria. Olho para a turma. A menina de fita amarela no cabelo, agora, é a prostituta drogada, espancada e presidiária.
Que angústia! Não dá tempo! As palavras vêm... vêm... Tenho que registrá--las, senão se apagam. Eles falam sem parar. Chamam-me. Pedem explicação. Repito mecanicamente:
— Dois mais dois não é igual a uma vida farta. É a fome. Fome de quê?                    Fome de saber. Fome de conhecer. Fome de escrever. Escrever muito. Não uma coisa qualquer, sem nexo, sem precisão. Escrever o que vem de dentro. Descrever o bicho estranho das entranhas. O alienígena de um olho só, que vive aqui dentro, louco para sair e mostrar sua cara: às vezes, horripilante, cheio de sentimentos carregados de frustrações; às vezes, terno e amável, cheio de sentimentos nobres, e, no final, morrer bêbado na sarjeta.
Às vezes, é só uma vontade de subir as montanhas e ficar lá, no pico mais alto, olhando o mundo aqui em baixo, e sentindo-me Deus.
Deus me livre do alienígena que me faz acordar, no meio da noite, e sair freneticamente, borrando tinta, no papel branco, a descrever personagens e personalidades criadas no vácuo de um mundo inexistente.
E o alienígena que vem de meu mundo interior, olha, com seu olho único, ao redor, procurando, procurando... Ansioso, compenetrado, astuto... E vai encontrando, aqui e ali, os motivos.
De uma barata de pernas para o ar, nasce “A agonia da barata”, que nada tem a ver com a pobre barata, mas com a mãe que agoniza em uma cama de lençóis brancos, cheios de carimbos de identificação do ambiente a que pertence. De um sono tranqüilo, nasce “O filho de minha alma”, que foi gerado em meu coração.
E o olho olha. Volta atrás, vai ao futuro, busca a rima, a simetria, a melodia, a gravura, a forma, a palavra. Busca, lá dentro, o que cada um tem. O olho. O olho alienígena, querendo sair. Salve, salve pátria amada, Brasil! Seus campos são mais verdes, suas matas, testemunhas da ciranda do Sol e da lua, que torna a vida de uma mesmice enfadonha, em saudade de um tempo perdido no passado remoto, que pulula o pensamento. E da mente, brotam palavras, antes esquecidas ou apenas guardadas, reservadas para o momento da criação. O momento que vem das entranhas, das profundezas da Prosérpina ou Perséfone, a rainha dos infernos da mitologia grega, a divindade representante da força uterina.
Viajo em um túnel de luz à velocidade dela mesma, atraída pela sirene que anuncia a chegada do recreio. É um impacto com a realidade que me deixa atordoada. Sinto vertigem. As crianças correm para pegar um lugar na fila do lanche. Isso sugere falar de fome. Da fome de Biró e Gorette. Fome de comida, fome de amor em uma terra seca, de onde até a “Asa branca” bateu asas e voou. De minha fome de alimentar o alienígena de um olho só. Não posso agora. Tenho que alimentar a carcaça que o abriga.
Vou para a sala, onde se reúne a alma do educandário. O grão do olho gira em círculos. Vendo todos e não vendo ninguém. Refletindo outras imagens. Imagens irreais, nascidas de um cérebro em criação.
O sinal. Ah! O bendito sinal, anunciando o fim do recreio. Volto rápido para a sala. Tenho que registrar tudo. Tudo que vivi e vi estampado na fisionomia dos colegas de labor, enquanto engolíamos algumas colheradas da sopa bem cozida nos caldeirões da salvação de muitos guris que vivem no limite da miséria. Espetáculo deprimente, se considerada a verdadeira função de uma instituição de ensino.
Não quero pensar nisso. Agora não. Tenho que registrar fatos, cenas e cenários nascidos da ilusão. O tempo é pouco. Apenas alguns minutos entre uma tarefa no quadro e uma correção no caderno.
A caneta desliza freneticamente, e o alienígena, finalmente, nasce. Ora com aspecto horripilante e medonho de um mundo socialmente desigual, ora com o aspecto angelical e terno de um amor inocente e adolescente. O fato é que sai recheado de emoções e disposto a emocionar. Vai lambendo a fantasia e traduzindo-a em palavras. Palavras interrompidas pelo apito final.
Junto tudo, sem discernir direito o que é real do que é imaginário. As imagens misturam-se. O alienígena busca, avidamente, seus personagens entre as centenas de crianças que ganham as ruas, ansiosas para chegar em casa.
Vislumbram-se imagens borradas ou desbotadas de seres em formação. O alienígena vai à frente, pendurado no estômago, debatendo-se, sem desgrudar-se. Seu único olho tudo vê. Os pardais, numa alegre sinfonia de fim de tarde, sempre na mesma árvore. Um outdoor, sugerindo um romance secreto, para anunciar um simples par de tênis.
De repente, um telão liga-se ao negrume do asfalto. Vai andando na frente, desenhando senas irreais. Estão na mente ou no chão? Parece tudo tão real! Preciso registrar, senão esqueço. As palavras brotam, lindas, inimagináveis, desconhecidas, impulsionadas pelas imagens do telão, que persiste em caminhar no negrume do asfalto. É romântico, mas também é tristonho. Lembranças de um passado recente. Uma união. Um amor carnal. Um amor desfeito. Uma morte estúpida, sob as rodas de um veículo onde se lia “Com Deus eu vou”. Eu vou matar. Eu vou separar para sempre esse amor.
Essas palavras tão bonitas foram interrompidas pela buzina de um caminhão, não daquele onde se lia, mas deste que estava quase a me esmagar tal era a absorção em meu mundo imaginário. Tudo foge. O telão se apaga. Entro em um vácuo obscuro e sem luz. As palavras bonitas dão lugar à tremura da carne, à palidez facial, à vontade intensa de urinar. Com um sorriso amarelo, como a flor-de-murici, saio dali a cambalear.
Em casa. Finalmente em casa. Papel e lápis para andar mais depressa. Computador demora a ligar. O alienígena tem pressa. Seu olho olha para o papel branco. A caneta está a postos, pronta para deslizar. Mas o papel continua branco por horas a fio. Só o papel branco e um vácuo insuportável. Um vazio na cabeça. Um nada no pensamento. As imagens não vêm. O pensamento foge. O olho inerte só vê o papel branco. É uma sensação de inexistir, de não ser nada, de não ter utilidade. Sinto vontade de dormir. O sono demora a chegar, uma busca incessante das imagens perdidas no medo da morte. Tudo perdido. Uma tarde inteira de intensa criação, perdida na buzina de um caminhão. Só restaram fragmentos de anotações em um papel sujo e amassado, catado no lixo.
Assim ela nasce. Assim ela morre.